Entrevista com S.T. Joshi Tradução do inglês de Mário Jorge Lailla Vargas. Fonte: Site 'Temple of Dagon', publicado neste site com a autorização do autor. S.T. Joshi é uma das principais autoridades em H.P. Lovecraft e vários outros autores nos gêneros de sobrenatural e de fantasia. Publicou muito trabalho correlato, incluindo sua biografia premiada H.P. Lovecraft: Uma Vida (HP Lovecraft: A Life) e o muito extenso Uma Enciclopédia de H.P. Lovecraft (An H.P. Lovecraft Encyclopedia) que possuo e recomendo muito. A data da entrevista: 9 de outubro de 2004. TOD: Parece que te repugna a frase Mitos de Cthulhu. Muitos puristas a rejeitam porque não era um termo de Lovecraft, mas é largamente aceita. Achas um termo apropriado? Ou tem ocasião em que achas apropriado e outras não?STJ: Na verdade fico indeciso sobre o uso do termo. Parece improvável que outro passe a uso corrente. Então creio que a tentativa de o substituir (por exemplo, por Mitos de Lovecraft, que considero um pouco mais apropriado), é fadado ao fracasso. Um argumento contra o uso do termo, sendo Cthulhu uma entidade que não é uma das deidades principais dos mitos, me parece nulo desde que August Derleth, que cunhou o termo, declarou, explicitamente, o ter escolhido porque foi em O Chamado de Cthulhu (The Call of Cthulhu) que os mitos foram personificados coerentemente em primeira vez. O termo de Dirk W. Mosig, ciclo mítico de Yog-Sothoth, é tão grotescamente desajeitado que nunca vingará. Ciclo Arkham, um termo que Lovecraft usava, não é tão ruim. Mas, bom ou mau, temo que estejamos presos a Mitos de Cthulhu. TOD: Se diz que Lovecraft acreditava sempre usar conhecimentos práticos, nunca contrariando completamente o conhecimento vigente. Achas isso verdadeiro em seu trabalho todo ou, principalmente, em aspectos geográficos ou científicos? STJ: Sim, acredito que Lovecraft, até onde possível, tentou fundamentar sua obra na ciência vigente, mesmo sem expressar essa intenção conscientemente (ou seja, a preferência em compor suplementando em vez de contradizendo as leis conhecidas sobre o assunto), até uma carta de 1931. Há, claro, algumas gafes embaraçosas, como quando citou o homem de Piltdown[1] em Dagon e Os Ratos nas Paredes (The Rats in the Wall), mas não poderia ter sabido que era uma farsa. Acho que A casa Abandonada (The Shunned House) é um marco no uso dessa concepção: O mito do vampiro é reinterpretado, levando em conta Einstein e a energia intra-atômica (a teoria quântica). Admitiu, não há explicação detalhada de como isso é possível mas acho que o gesto é importante. Foi dito que alguns contos onde Lovecraft usa um supranaturalismo relativamente convencional, como, por exemplo, O Brejo da Lua (The Moon-bog), estão entre seus contos mais fracos. TOD: Falando de consistência, dirias que Lovecraft era consistente em sua criação? Pessoas tendem a explicar várias entidades e caracteres juntando e misturando fatos conhecidos de múltiplas histórias. Tendo estudado seus escritos e cartas a fundo, achas que há um nível de continuidade nos trabalhos? Ou há demasiada inconsistência importante ou secundária pra permitir tais definições? STJ: Nunca achei que Lovecraft esperasse que alguém peneirasse seu trabalho pra ver se, digamos, sua concepção de Cthulhu, Yog-Sothoth, etc., era coerente de uma história a outra. De fato, não creio que são e não acredito que Lovecraft visava tal precisão. Teria percebido o quão complexo ficaria se sua imaginação estivesse presa a concepções prévias. A figura de Nyarlathotep, por exemplo, é, em minha opinião, incoerente duma história a outra: Aparece como um tipo de conferencista itinerante num conto (Nyarlatotep), um faraó egípcio noutro (Procurando Kadath; (The Dream-Quest of Unknown Kadath) [A busca Onírica à Desconhecida Kadath]), e, aparentemente, como um dos fungos de Yuggoth noutro (Um Sussurro nas trevas (The Whisperer in Darkness)). A simples alegação de Nyarlathotep ser uma forma mutante é apenas uma admissão de que sua forma externa, além das características internas, serem radicalmente diferente dum conto a outro. As cronologias pré-históricas como registrado em Nas Montanhas da Loucura (At the Mountains of Madness) e A Sombra fora do Tempo (The Shadow out of Time) contém, ao menos, uma contradição séria. Como Robert M. Price demonstrou, o próprio Necronomicon se torna um tipo muito diferente de livro de uma história a outra. TOD: Lendo teu trabalho se tem a impressão de questionares o crédito dado a muitos escritores de horror recentes e citas a razão pra sua aclamação como sendo, freqüentemente, menos que literária. Ao contrário, há algum escritor recente que percebes não receber bastante crédito? STJ: Ainda fico surpreso de Ramsey Campbell não ser mais famoso. Parece incrível: Durante alguns meses teve de trabalhar numa livraria Borders, na Inglaterra, pra terminar uma reunião (muito bem aproveitada em seu recente romance, Durante a Noite (The overnight)). Creio que nenhum trabalho seu virou filme. Tenho pouca dúvida de que as gerações futuras o considerarão o principal escritor horrorífico de nossa geração, com uma obra equivalente a Lovecraft ou Blackwood. Thomas Ligotti é outro escritor que, deliberadamente, mantém baixa produção, destinada a publicar, principalmente, na pequena imprensa. A pequena produção de TED Klein é destinada à sobrevivência. Não faço muito esforço pra prestigiar escritores contemporâneos de horror, mas gostei muito de alguns trabalhos de David J. Schow, Norman Patridge e Kathe Koja. A posteridade tem um modo desumano de separar o modismo popular do genuinamente meritório. E estou confiante de que o trabalho apelativo de escritores como Stephen King, Anne Rice, e Clive Barker cairá na sarjeta. As mesmas características que popularizam (sua aparente relevância pra nossa época pelo uso de artefatos de nossa cultura contemporânea) fará com que sejam condenados pelas futuras gerações. TOD: Me dá coceira ouvir gente discutir o Necronomicon como uma verdadeira obra escrita. Pensas que isso se deve a desinformação (característica notória da internet) ou do desejo de muitos de que de fato exista? Já viste tal nível de convicção noutra escrita fictícia? STJ: Sim. Acho que é o caso de pessoas quererem, tão desesperadamente, que algo seja verdade, que acabam se convencendo de que é. Me lembro de, há muitos anos, ter encontrado um rapaz na biblioteca John Hay, da Universidade Brown, que, quando tropeçou no Necronomicon George Hay (uma brincadeira muito engenhosa, certamente) ficou absolutamente convencido da real existência da obra. Há esse tipo de auto-ilusão em muitas outras áreas, principalmente, na área de religião. Não conheço trabalho fictício que cativou tanto a imaginação popular quanto o Necronomicon mas, claro, alguns outros trabalhos fictícios também foram empurrados impetuosamente, tanto por Lovecraft quanto por outros. TOD: Sempre lês trabalhos recentes baseados em mito? Sentes que, às vezes, podem ajudar a manter o espírito de Lovecraft e de outros vivo? Ou preferes aderir aos originais? STJ: O problema é que, com tanta abordagem moderna aos mitos, acabam reescrevendo as próprias histórias ou concepções de Lovecraft sem acrescentar novidade ou inovação. Como instância de homenagem conduzem tais trabalhos muito bem mas, no fim, depreciam as idéias de Lovecraft porque poucos escritores as podem tratar com a agilidade e a habilidade de Lovecraft. Sempre há perigo de que o crítico (variando de Edmund Wilson a Damon Knight) confunda essas imitações inferiores com o original e, assim, rebaixe o próprio Lovecraft à inabilidade de seus pretensos sucessores. Há, certamente, algumas extrapolações imaginativas das idéias de Lovecraft (não quero dizer, necessariamente, mitos, apenas idéias) em obras como Pegada Fria (Cold Print), e Os Parágrafos de Franklyn (The Franklyn Paragraphs), de Ramsey Campbell, Dagão (Dagon) de Fred Chappell e Varas (Sticks) de Karl Edward Wagner. E outros que posso nomear se apontares uma arma a minha cabeça. A chave é escritores usarem idéia ou imagem de Lovecraft como trampolim pra suas próprias concepções, não somente como desculpa pra refazer o original. Ninguém quer ler uma versão inferior, degenerada, em vez do próprio A Sombra sobre Innsmouth (The Shadow over Innsmouth). TOD: Eis uma série de razões do porque as histórias deviam ser consideradas míticas, que alguns consideram um gênero próprio. Achas que há elementos-chave tendendo a isso? Ou preferes não pensar assim, ou apenas ter uma opinião pessoal? STJ: Há contos que são lovecraftescos e os que são mitologescos. Não são, necessariamente, a mesma coisa. Pessoas que escrevem nesse pequeno subgênero tendem a ter uma visão muito estreita do assunto: Os contos míticos de Lovecraft incluem o melhor numa dúzia de suas histórias e ali há muitas outras histórias com concepções interessantes que poderiam ser aperfeiçoadas. Certamente, apresentando apenas um nome fortuito, como Azathoth ou Dunwich, sem utilizar as concepções mais profundas de Lovecraft, a história não deveria ser considerada uma história totalmente mítica. Provavelmente não será uma história de algum tipo específico. Mas tenho pouco interesse nesse tipo de classificação ou minúcia. TOD: Conhecemos o desgosto de Lovecraft pela maioria dos filmes e muitos acham que ficaria horrorizado com alguns filmes baseados em sua obra. Exclusive as adaptações, há história que gostarias de ver filmada? STJ: Sendo que minha história de Lovecraft predileta é Nas Montanhas da Loucura (At the Mountains of Madness), gostaria de ver essa novela em filme. Soube que Guillermo del Toro está, de fato, trabalhando numa superprodução cinematográfica, agora mesmo. Porém, a dificuldade em fazer um filme verossímil é formidável: Como descrever a sucessão retrospectiva na qual a história dos deuses primevos é descrita? Se mostrando de fato essas entidades que constroem suas magníficas cidades ou o quê mais, poderia ficar bem engraçado. É preciso muito cuidado nessa e noutras tarefas. Creio que um filme de sucesso possa ser feito de A Coisa na Soleira da Porta (The Thing on the Doorstep), que é, sobretudo, uma história humana que envolve a interação de alguns personagens. Um filme comum pode render muito mais que o gênero horror cósmico, no qual Lovecraft é famoso. Como sou escritor recebi o roteiro cinematográfico de A Coisa na Soleira da Porta, escrito por KL Young, que trabalhou em algumas excelentes míni-produções lovecraftianas. Também quero dizer que, no recém-concluído HPL Festival, em Portland, Oregon, vi o trailer de um bem cotado filme, de O Chamado de Cthulhu (The Call of Cthulhu), como uma imitação de um filme mudo. Portanto, eis a esperança de que em breve veremos um filme de Lovecraft realmente meritório. TOD: Já recebeste presente interessante de fã de teu trabalho? Arte inspirada em Lovecraft, estatueta de Cthulhu feita à mão ou algo especial que realmente apreciaste? STJ: Lamento, nada vem à mente. TOD: Há projeto futuro que, em especial, esperas? STJ: Agora, tendo publicado quase tudo da ficção de Lovecraft em edições anotadas (Penguin Books), e estando no prelo uma edição anotada das composições de Lovecraft (Hippocampus Press), parece que não deixaram muita coisa pra eu fazer. A fronteira final, em pesquisa lovecraftiana, era a publicação de suas cartas. Meu colega David E. Schultz e eu estamos transcrevendo e editando todas as cartas existentes para uma eventual publicação em CD-ROM. Isso ainda pode levar anos mas, por enquanto, estamos editando pequenos lotes das cartas para um determinado correspondente de Night Shade Books e Hippocampus Press. Gostaria de publicar a correspondência em comum de Lovecraft e Clark Ashton Smith, pois temos todo o lado de Smith, mas não todos os de Lovecraft, e a correspondência em comum de Lovecraft e Robert E. Howard, que temos ambas as partes, mas não as protegidas por direito autoral, excluídas. Devo ter dito tudo o que queria sobre o Lovecraft homem e escritor em meus vários livros, especialmente minha biografia, finalmente impressa pela Necronomicon Press (e aqueles ensaios críticos como H.P. Lovecraft: O Declínio do Oeste (H. P. Lovecraft: The Decline of the West). Provavelmente não verás outro crítico meu. Então retomo a questão: Pode haver um livro que lide com as respostas de Lovecraft aos eventos políticos, sociais e culturais de sua época, algo que, esporadicamente, tentei fazer em minha biografia sobre ele, mas não pude fazer de modo coerente ou exaustivo. O que Lovecraft pensava de Woodrow Wilson, Calvin Coolidge, Billy Sunday, Ernest Hemingway? Acho que pergunta desse tipo exige resposta detalhada. TOD: Sempre quis saber o fato mais importante que aprendeste sobre Lovecraft. Seria fácil dizer qual detalhe consideras mais interessante. Mas isso é assunto muito pessoal. Ao contrário: O que é mais significativo em relação ao conhecimento sobre ele? STJ: Pergunta surpreendentemente difícil de responder. Acho que a descoberta mais excitante, que não fiz, mas fui o primeiro a examinar na ocasião, foi a descoberta do manuscrito autógrafo original de A Sombra fora do Tempo (The Shadow out of Time), em 1994. História que me incomodara durante anos, ao perceber que o texto publicado em Histórias Espantosas (Astounding Stories) era inexato em muitos detalhes (especialmente em diagramação), mas não havia como restabelecer o texto sem um manuscrito. Tentei uma restauração conjetural do texto e até a distribuí entre meus colegas. Mas com a descoberta do manuscrito autógrafo pudemos, finalmente, ler essa grande história tal qual Lovecraft a escreveu. O resultado me deixou empolgado. Quero dizer que o manuscrito original de O Assombro das Trevas (The Haunter of the Dark), antigamente pertencente a Donald A. Wollheim, também está desaparecido, embora eu duvide que, caso seja encontrado, revele um texto radicalmente diferente do que temos. Quanto a algum fato verdadeiro sobre Lovecraft eu diria que nossa consciência geral do quão cuidadosamente acompanhou os eventos políticos de sua época (pois leu o Diário de Providência (Providence Journal) diariamente quase a vida toda e, também, assinava as edições dominicais da Tribuna de Nova Iorque (New York Tribune) e o Periódico Nova Iorque (New York Times) em diversas fases da vida) derrubou, definitivamente, o estereótipo de um Lovecraft misantropo excêntrico, isolado da vibrante América dos anos 1920 e 1930. Percebendo isso podemos ver as histórias de modo muito diferente: Já não parecem apenas exercícios arrepiantes, mas o trabalho de um homem que buscou, até mesmo de modo um tanto indireto, contar os eventos marcantes de seu próprio cotidiano através da ficção imaginativa. TOD: Tens alguma palavra final aos leitores de Temple of Dagon? STJ: Me ofende não haver, hoje, todo o ebuliente interesse erudito, que havia há uma ou duas décadas, sobre Lovecraft. A bolsa de estudo Lovecraft foi revolucionada de cerca de 1975 a cerca de 1990 mas, desde então, não houve muito trabalho significativo. Talvez isso seja inevitável: Muito do trabalho está concluído. Então há menos avenida nova, talvez, pra explorar. Fui levado a outras direções e o enfoque principal de meu trabalho não é, ainda, Lovecraft, mas escritores como Ambrose Bierce, Clark Ashton Smith, e George Sterling, sem mencionar meu trabalho alheio ao reino da ficção insólita (por exemplo, HL Mencken, religião, política, etc.). Assim não fui capaz de ser o líder do movimento lovecraftiano que eu era ao redor 1990. Fiquei um tanto espantado de não terem surgido pesquisadores mais jovens pra continuar a tradição. Talvez apareçam. Mesmo assim, o tanto que o homem e escritor Lovecraft cresceu na estima pública, nas últimas décadas, é notável: Está firme e permanentemente estabelecido no cânone da literatura americana e mundial e há pouca probabilidade de que futuramente se debilite. O legado de Lovecraft é inigualável em fascinar tanto o erudito acadêmico quanto a classe popular. Creio que nenhum escritor pode repetir essa atração estranhamente esquizofrênica. E acho que é exatamente isso que o levará à posteridade. ------------------------------------------------------------------------------------------ [1] Eoanthropus dawsoni (homem de Piltdown) - Em 1912 Charles Dawson anunciou a descoberta de um fragmento de maxilar, dois dentes molares e um fragmento de crânio. As evidências foram aclamadas, pelos peritos, como prova da existência dum homem-macaco que existiu entre 300000 e 1 milhão de anos atrás. Só em 1953, mais de 40 anos depois, os cientistas suspeitaram ser uma fraude. O maxilar era de um orangotango, os dentes foram trabalhados, os ossos coloridos e o crânio pertencera a uma mulher comum. A fraude era gritante. Na ocasião da descoberta alguém declarou que seria uma fraude, mas os cientistas ignoraram inúmeras evidências. A facilidade com que as autoridades científicas foram ludibriadas mostra o poder da influência de idéias pré-concebidas entre os evolucionistas, que anulam a razão pra defender sua convicção, deixando cientistas e religiosos em pé de igualdade no que diz respeito à fé. [de http://ssilva777.tripod.com/evol/eoanthropus.htm, nota do tradutor]